No dia 18 de março, publicamos em nosso website uma notícia: “Estudo da USP confirma que máscaras foram inúteis e possivelmente perigosas na COVID-19”.
No dia 21 de março, a Agência de checagem Aos Fatos publicou um suposto “desmentido”. “Estudo da USP não comprova que máscaras foram inúteis e perigosas na pandemia de Covid-19”.
Logo na abertura, eles colocaram uma introdução:
Não é verdade que um estudo publicado pela USP (Universidade de São Paulo) comprovou que máscaras faciais foram “inúteis e possivelmente perigosas” durante a pandemia de Covid-19. Especialistas consultados pelo Aos Fatos apontam que a pesquisa não avaliou a eficácia nem a segurança dos equipamentos de proteção. O estudo buscou associações entre dados já existentes e, por sua metodologia, não pode inferir relações de causa e efeito.
Publicações com o conteúdo enganoso acumulavam cerca de 110 mil curtidas no Instagram, 1.200 compartilhamentos no Facebook e mais de 2.000 repostagens no X (ex-Twitter) até a tarde desta quinta-feira (20).
A primeira coisa a se notar é o jogo de palavras. Na notícia, nós dissemos uma coisa e eles checaram outra.
Nós dissemos que o estudo da USP confirma que máscaras foram inúteis e possivelmente perigosas. Eles disseram que o estudo da USP não comprova que máscaras foram inúteis e perigosas.
Ou seja, eles checaram o que acharam que escrevemos, não o que efetivamente escrevemos.
E por que dissemos que o estudo da USP confirma que máscaras foram inúteis?
Porque há uma meta-análise extremamente rigorosa, feita pela Cochrane, utilizando apenas estudos randomizados, “padrão ouro”, que não conseguiu comprovar eficácia das máscaras para redução de infecções respiratórias, incluindo COVID-19.
O estudo está aqui: Physical interventions to interrupt or reduce the spread of respiratory viruses
Este é o principal gráfico da meta-análise:

Explicação do gráfico: no primeiro bloco, “Influenza/COVID-like illness”, está a incidência de gripe ou Covid sem confirmação em laboratório. Na esquerda, na lista que começa com “Abaluck” e vai até “Suess” é a lista de estudos agregados desta primeira categoria de estudos de máscaras.
Na última coluna da direita, do desenho com uma barra no meio, é o resultado de cada estudo. Os “quadradinhos” que ficam à esquerda da barra vertical significam tendência de eficácia, ou seja, favorável à intervenção. À direita, é tendência de ineficácia. Como podemos ver, ficou misturado, com alguns um pouco à esquerda e outros um pouco à direita.
Na última linha da categoria, temos o subtotal. O losango representa a somatória de todos os estudos da categoria. O primeiro losango, por exemplo, está encostado na linha vertical, o que significa que nenhuma eficácia foi constatada. Logo à esquerda do losango, temos a coluna RR (risco relativo), que indica 0.95. Ou seja, houve uma eficácia pontual de 5% em todos esses estudos. Entretanto, entre colchetes, temos os valores [0.84, 1,09]. O que significa isso? Que a somatória deu 5% de eficácia, mas é sem significância estatística, com a eficácia podendo ser 16% ou 9% negativa. Isso é o equivalente à margem de erro em pesquisas eleitorais. Na coluna anterior, há a somatória do número de pacientes em todos os estudos. Foram pouco mais de 116 mil pessoas usando máscaras comparadas a pouco mais de 160 mil pessoas sem máscaras.
No segundo bloco, incluídos também estudos de padrão ouro, mas com Covid confirmada em laboratório, deu um risco relativo de 1,01 na somatória total. Ou seja, uma eficácia negativa de 1% e sem significância. Apenas um ruído estatístico. Mesmo com todos esses estudos, a eficácia não conseguiu ser comprovada.
“Os pontos importantes são: as direções de efeitos nos vários estudos variam; a estimativa pontual de eficácia ficou pequenininha e o IC (intervalo de confiança) também não é grande. Dificilmente algo fica mais perto de ser ‘comprovadamente ineficaz’”, explicou Daniel Tausk, professor da USP – Universidade de São Paulo.
“Não faz sentido você duvidar disso por causa da qualidade dos estudos randomizados envolvidos para depois pegar um estudo observacional, que é muito pior, para dizer que acredita na eficácia”, complementou.
De volta ao estudo da USP
Estes estudos – incluídos na meta-análise de Cochrane, referência mundial – são “padrão ouro”. O que isso significa? Que eles são RCT (Randomized controlled trials), em português “estudos randomizados controlados”. Os estudos RCT conferem causalidade.
O estudo da USP é observacional. Além de ser observacional, ele é populacional. O que isso significa? Que é um menor nível de evidência científica (menos forte). Não atesta causalidade, apenas associação.
O estudo da USP não conseguiu ver associação do uso de máscaras com menos infecções. A checagem disse: “Estudo da USP não comprova que máscaras foram inúteis”.
Exatamente. O estudo da USP apenas confirmou a Cochrane, que já havia comprovado a ineficácia. Por isso, o MPV utilizou o título: “Estudo da USP confirma que máscaras foram inúteis”.
Entretanto, o estudo da USP foi mais longe: viu uma associação do uso de máscaras com excesso de mortalidade.
É possível, portanto, cravar que o uso de máscaras causou mortes? Não. Mas indica uma tendência e o próprio estudo pede que sejam feitos mais estudos. É um dado alarmante.
De qualquer forma, o que temos? Máscaras são comprovadamente inúteis para reduzir infecções e são possivelmente perigosas. Isso tem utilidade para definição de políticas públicas.
Estudos observacionais devem ser descartados?
As pessoas que desejam que o resultado de um estudo seja inválido costumeiramente apelam para a afirmação que os estudos observacionais não comprovam nada.
Entretanto, estudos observacionais fazem parte de um corpo de evidências. Dependendo dos desfechos medidos, o quanto foi o efeito medido, eles são válidos.
Um exemplo simples disso é que nunca foi feito um estudo randomizado, duplo cego, para comprovar a eficácia da insulina para diabéticos. Ninguém ousa dizer que esta intervenção médica não funciona.
Outro fato irônico sobre a seletividade das evidências e o comportamento diante delas é que nenhuma vacina COVID mostrou, em estudos randomizados “padrão ouro”, reduzir mortes de COVID. Apenas estudos observacionais, mas diante deste fato, não há, na narrativa oficial da pandemia, algo como “estudo observacional não permite inferir causalidade”, e dizer que as vacinas não são comprovadas.
De volta à checagem
Aos fatos seguiu assim:
Circulam nas redes publicações que alegam que um estudo da USP teria comprovado que o uso de máscaras durante a pandemia de Covid-19 foi “inútil e potencialmente perigoso” para a população. No entanto, especialistas consultados pelo Aos Fatos afirmam que essa interpretação é equivocada.
André Bacchi, doutor em Ciências Fisiológicas e professor adjunto da UFR (Universidade Federal de Rondonópolis), explica que o desenho do estudo não tem capacidade de comprovar tais afirmações, pois não avalia a eficácia das máscaras nem questões de segurança e risco.
“O estudo é de caráter exploratório. Ele explora os dados buscando associações a partir de alguns critérios pré-estabelecidos pelos autores, mas não confirma absolutamente nada, já que não é um tipo de desenho de estudo capaz de confirmar algo”, esclarece Bacchi.
O estudo encontrou ineficácia e confirmou a meta-análise da Cochrane. André Bacchi ou não conhece todo o corpo de evidências ou tenta ludibriar.
Ele destaca que a maior limitação do estudo é a metodologia empregada, que impede a formulação de conclusões causais. Além disso, o professor argumenta que as hipóteses levantadas pelos autores são especulativas, com pouca fundamentação no conhecimento científico.
A conclusão é via Cochrane. Uma meta-análise apenas de estudos RCT é o maior nível de evidência científica possível. Um professor de uma Federal deveria, antes de palpitar sobre estudos científicos em um meio de comunicação de massa, principalmente uma suposta checagem de fatos, conhecer todo o corpo de evidências sobre o assunto que deseja palpitar.
Metodologia do estudo. O professor Leonardo Costa, doutor em epidemiologia pela Universidade de Sydney, explica que o estudo é observacional retrospectivo, ou seja, quando se busca e analisa dados já existentes. Foram usadas informações de 24 países europeus para observar o excesso de mortalidade, métrica que compara taxas de óbitos gerais de anos anteriores para verificar aumentos ou reduções na tendência de mortes.
Durante a pandemia, houve um excesso de mortalidade global não apenas em decorrência da Covid-19, mas também por uma série de fatores, como medo de procurar o hospital ou o colapso de diversos sistemas de saúde.
Por meio de diversas variáveis, o estudo buscou entender o que poderia estar associado ao excesso de mortalidade e encontrou uma correlação com o uso de máscaras. No entanto, isso não significa que o uso de máscaras tenha causado o aumento de mortes.
Como se trata de um estudo observacional retrospectivo, ele não pode inferir causalidade. Diversos outros fatores podem estar envolvidos, mas não foram explorados na pesquisa — algo reconhecido pelos próprios autores.
“Os autores falam assim: nós encontramos essa associação. Nós temos algumas hipóteses do porquê isso pode ter acontecido. Nós não temos certeza de absolutamente nada. Existe uma variável aqui não explicada e novos estudos no futuro têm que investigar isso com muito mais rigor do que o desenho de estudo e variáveis que eu tenho em mãos”, resume Costa.
Bacchi aponta que outra limitação do estudo é ignorar a variação do excesso de mortalidade ao longo do tempo, considerando apenas o valor pontual do final de 2021. Ao comprimir uma variação longitudinal a uma métrica pontual, o estudo perde a oportunidade de analisar a relação entre o uso de máscaras e a mortalidade de forma sincronizada, comprometendo a robustez das conclusões.
Beatriz Klimeck, pesquisadora com pós-doutorado em qualidade do ar na Universidade da Califórnia, em San Diego, reforça que, no artigo original, os autores levantam a hipótese de que o uso de máscaras em ambientes quentes e úmidos pode levar à contaminação por bactérias e fungos, além de potencialmente agravar doenças respiratórias.
No entanto, ela destaca que os próprios autores afirmam explicitamente não haver dados para confirmar o argumento republicado pelas peças desinformativas. Segundo ela, é consenso entre a comunidade científica que tal hipótese não tem relação com a mortalidade.
Qual consenso? Este é o primeiro estudo mostrando essa possibilidade. Como existe um tal “consenso” quando a hipótese foi levantada agora? O consenso é que as máscaras são inúteis para conter o vírus, e agora que podem – sim – ser perigosas se usadas indiscriminadamente. Além de ser inútil para conter os vírus, respirar por meio de máscaras em vez do ar ambiente parece ser prejudicial à saúde – o que tem lógica.
Interpretação dos dados. Para Costa, o principal problema do artigo foi ressaltar a correlação entre número de mortes e uso de máscaras por meio de um gráfico de grande destaque. “Associação não é causa. Mas o nosso cérebro vai olhar para um gráfico daquele e vai interpretar aquilo como causalidade”, afirma ele.
Bacchi acrescenta que a correlação apresentada foi feita em um chamado levantamento ecológico, que trabalha com agregados de dados de populações, e não permite inferir causalidade, já que não estabelece a ordem dos eventos.
Ele argumenta que, da mesma forma, seria possível uma hipótese de causalidade reversa. “Será que o número de máscaras leva ao aumento de mortalidade ou será que, por as pessoas estarem morrendo muito e a pandemia estar grave, foi incentivado um maior número de uso de máscaras?”, questiona.
Eficácia das máscaras. Os especialistas ressaltam que a eficácia do uso de máscaras depende de uma série de fatores, em especial o material do equipamento e o seu uso adequado.
Durante a pandemia, muitas pessoas usaram máscaras improvisadas, como as feitas de meia ou tecidos comuns. Além disso, práticas inadequadas, como remover a máscara ao entrar em restaurantes, guardá-la no bolso e reutilizá-la sem higiene adequada, comprometem sua eficácia.
Isso significa que máscaras são ineficazes? “Não, de forma nenhuma”, responde Costa. “Máscaras são muito eficazes dentro de hospital, muito eficazes dentro de UTI, em bloco cirúrgico, etc. Por quê? Porque os profissionais sabem usar de maneira correta”, conclui.
Outras checagens
Tanto o Estadão Verifica como a Agência Lupa também fizeram checagens. Todos ignoraram a revisão máxima da Cochrane que prova a ineficácia. O nome disso é “cherry picking”.
Todos no mesmo sentido: “o estudo não comprova nada!” Como se a ineficácia já não estivesse fartamente comprovada.
Agora temos uma hipótese, nada surpreendente, que piore a saúde das pessoas que usaram por longos períodos.
Engraçado é que o Estadão Verifica fugiu de nossas questões factuais sobre outro assunto.
É assim que as “checagens de fatos” manipulam a opinião pública.