Sempre que ouço o maravilhoso “Xote das meninas”, música de Zé Dantas e Luis Gonzaga de 1953, não consigo evitar pensar em como essa música inocente, que fala sobre a puberdade, a chegada do amor e o fim da infância se passaria hoje, num ordinário ambiente urbano.

A letra original da música, abaixo:

Mandacaru quando flora na seca
É um sinal que a chuva chega no sertão
Toda menina que enjoa da boneca
É sinal que o amor já chegou no coração
Meia comprida não quer mais.
Sapato baixo, vestido bem cintado, não quer mais vestir gibão.

Ela só quer só pensa em namorar (2x)

De manhã cedo já tá pintada
Só vive suspirando sonhando acordada
O pai leva ao ‘dotô’ a filha adoentada
Não come, nem estuda, não dorme e nem quer nada

Ela só quer só pensa em namorar (2x)

Mas o ‘dotô’ nem examina,
Chamando o pai do lado lhe diz logo em surdina
Que o mal é da idade e que prá tal menina
Não tem um só remédio em toda medicina!

Ela só quer só pensa em namorar (2x)

A música, uma obra-prima do nosso cancioneiro popular, em sua simplicidade fala de um aspecto muito profundo da nossa cultura – como é característico na vastíssima obra de Gonzagão.

A menina, entrando na adolescência, perde os interesses da infância e passa a se interessar pelas coisas da sexualidade e do amor. A analogia com o Mandacaru é singela, mas rica: o processo natural, do ciclo das estações, da chegada das chuvas, é antecedido pelo sinal natural – o florescer do Mandacaru sinaliza ao sertão que aí vem a chuva. O mesmo com a menina: deixando a boneca de lado, o bom entendedor já sabe que esse interesse arrefeceu e chegou um novo em seu lugar: namorar.

O pai – que de menina não entende nada – vê a filha “estranha”, com jeito de “adoentada” e leva no médico. O médico, de uma outra época, considera o contexto, a cultura, e sabe que não se trata de tratamento médico. São coisas da vida. A menina vai para casa viver sua adolescência tranquilamente. O pai, mesmo precisando se reassegurar com a “autoridade médica”, sossega, e deixa a filha em paz.

Hoje, esta menina vista por um psiquiatra (ou outro médico, já que a prática psiquiátrica se tornou endêmica), poderia perfeitamente ser enquadrada nos critérios de Transtorno Depressivo Maior do DSM-5:

O diagnóstico requer a presença de pelo menos cinco dos seguintes sintomas durante um período de 2 semanas, e pelo menos um desses sintomas deve ser humor deprimido ou perda de interesse ou prazer:

A. Humor deprimido durante a maior parte do dia, quase todos os dias, conforme indicado por observações subjetivas (como sentimentos de tristeza, vazio ou desesperança) ou observações feitas por outros (como aparência de choramingar) (ex: fica irritado).

B. Perda de interesse ou prazer nas atividades, incluindo atividades sociais, que antes eram apreciadas, e a diminuição da motivação.

C. Mudanças significativas no peso ou no apetite sem estar relacionada a dietas intencionais (perda ou ganho significativo de peso).

D. Distúrbios no sono, como insônia ou hipersonia (dormir demais).

E. Agitação ou retardo psicomotor (sensação de estar mais agitado ou mais lento fisicamente ou mentalmente).

F. Fadiga ou perda de energia constante, mesmo com atividades normais do dia a dia.

G. Sentimentos de inutilidade ou culpa excessiva ou inadequada, podendo ser irracionais.

H. Dificuldade de concentração ou indecisão, com baixa capacidade de tomada de decisões.

I. Pensamentos de suicídio ou morte (não apenas medo de morrer), ideação suicida ou tentativas de suicídio.

O médico, baseado nos relatos do pai e em alguma observação vaga da menina, pode constatar que ela tem dificuldade de concentração, falta de energia para as atividades do dia a dia, distúrbios do sono (“essa menina nem dorme mais, dotô!”), humor depressivo quem sabe (se seu amor não for correspondido, por exemplo), perda de interesse ou prazer nas atividades antes apreciadas (a pobre boneca deixada de lado, a menina que não estuda e nem quer nada…)

Bom, temos aí uma “depressão”. Se em 1953 não havia “um só remédio em toda a medicina”, hoje o pai da menina não precisa se preocupar: há muitos! Podem ser usados alternadamente, combinados, etc. Por exemplo, dependendo do psiquiatra, ele poderia também ver sintomas de desatenção e dificuldade de concentração na menina, e lhe tascar também um diagnóstico de TDAH (o próprio DSM indica a frequente “comorbidade” de TDAH com depressão). Por que não combinar o antidepressivo com um remédio para isso também?

Então, poderíamos atualizar a segunda estrofe da música para nossos tempos tão modernos e tecnológicos, em que os males da alma humana já foram decifrados em grande medida, e ficaria assim a coisa:

Mas o ‘dotô’ nem examina,
Chamando o pai do lado lhe diz logo em surdina
Que o mal é depressão e que prá tal menina
O melhor remédio é fluoxetina!

Essa menina, entrando num antidepressivo, teria seu funcionamento cerebral alterado. Quem sabe até seu pai acharia bom o resultado, talvez um achatamento emocional ou, com o tempo, coisas bem piores. O que há setenta anos seria “coisa da idade” e rapidamente passaria, hoje pode ser patologizado, medicalizado e, consequentemente, cronificado pelo próprio efeito do tratamento, que, ao contrário do discurso oficial, não “conserta” uma deficiência de neurotransmissores, mas sim induz o cérebro a alterações que procuram responder às mudanças promovidas pelo próprio remédio.

Assim, ao retirar os remédios – ainda mais se o faz sem a adequada diminuição hiperbólica (tema que ainda será tratado por aqui) – poderiam surgir novos sintomas, que, costumeiramente, não são atribuídos à retirada dos remédios, mas sim a uma “recaída” ou até mesmo a um novo diagnóstico – por exemplo, a retirada de um antidepressivo pode ocasionar um episódio de mania, o que poderia levar ao diagnóstico de bipolaridade e à prescrição de um “estabilizante de humor”, que por sua vez vai ocasionar novos efeitos colaterais… e a sorte está lançada.

O que vemos é que a patologização de uma questão da vida cotidiana pode levar ao desencadear de um processo crônico de patologização. É isso que se chama iatrogenia: o causamento de doenças por via da intervenção médica.