Um estudo publicado no BMJ Global Health, uma das principais revistas médicas internacionais, revela um padrão alarmante na regulação da saúde brasileira: entre 1999 e 2018, 44% dos 36 diretores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) iniciaram ou encerraram suas carreiras no setor privado que essas agências fiscalizam. De farmacêuticas a operadoras de planos de saúde, essa “porta giratória” entre o público e o privado pode comprometer a imparcialidade das decisões regulatórias, alertam os autores Mário Scheffer, da USP, e colaboradores. Em um país com o segundo maior mercado de seguros de saúde do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, tais laços levantam sérias preocupações sobre a captura regulatória, quando interesses comerciais influenciam políticas que afetam milhões de brasileiros.
“Quase metade dos executivos que trabalhavam nas duas principais agências reguladoras federais de saúde do Brasil começaram ou terminaram trabalhando para empresas privadas regulamentadas por essas agências. Essa “porta giratória” no setor de saúde é um fenômeno pouco conhecido que tem o potencial de reduzir a qualidade da regulação governamental e da formulação de políticas públicas de saúde”, escreveram os autores.
O estudo, intitulado “Revolving doors and conflicts of interest in health regulatory agencies in Brazil”, analisou trajetórias profissionais detalhadas, destacando como ex-diretores migram para cargos lucrativos em empresas reguladas, ou vice-versa. Embora o período analisado termine em 2018, o fenômeno persiste, como mostram casos recentes de conflitos de interesse nessas agências.
O que o estudo encontrou?
Os pesquisadores mapearam as carreiras de todos os diretores das duas agências ao longo de duas décadas. Dos 36 perfis examinados, 16 (44,5%) apresentaram migrações entre o setor público e o privado. O que chama atenção é a fluidez profissional: muitos alternam entre cargos na Anvisa/ANS e posições em laboratórios farmacêuticos, associações de planos de saúde e consultorias especializadas.
A Figura 1 do artigo ilustra as trajetórias:
- Público-agência-público: 55,5% (permanecem no serviço público).
- Público-agência-privado: 30,5% (saem para o privado após mandato).
- Privado-agência-privado: 14,0% (entram vindos do privado).
Esses dados são inéditos para países de renda média, contrastando com estudos em nações ricas como EUA e Reino Unido, onde as portas giratórias são mais documentadas e reguladas.
Riscos para a saúde pública
A captura regulatória não é abstrata: ela pode se manifestar em aprovações aceleradas de medicamentos de alto custo, flexibilizações em normas de planos de saúde ou lentidão em fiscalizações rigorosas. “Um estudo australiano apontou os riscos potenciais da porta giratória para as políticas de saúde pública, mostrando que inúmeros ex-funcionários públicos passaram a trabalhar nas indústrias de bebidas alcoólicas, alimentos e jogos de azar, desempenhando atividades diretamente relacionadas aos seus empregos anteriores no governo”, afirmaram os autores.
“Existem também portas giratórias do governo para o mercado, em que funcionários públicos assumem cargos em empresas privadas, consultorias, centros de estudos ou associações empresariais representativas — cargos nos quais, teoricamente, podem usar sua experiência e redes de contatos dentro da administração para beneficiar seu novo empregador”.
“Há também registros de conflitos de interesse causados por práticas de portas giratórias envolvendo a FDA, a Agência Europeia de Medicamentos e agências do Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido. Os conflitos podem variar desde o financiamento de ensaios clínicos por empresas farmacêuticas até estratégias de fabricantes de alimentos e bebidas para evitar regulamentações mais rigorosas ou lobby da indústria para limitar a rotulagem nutricional nas embalagens”, explicaram os pesquisadores.
O que falta no Brasil?
A legislação brasileira é frágil: a quarentena para ex-funcionários é curta. “A eficácia dessas normas é questionável no Brasil. Por exemplo, o período de carência que impede ex-servidores públicos de trabalharem em empresas com potencial conflito de interesses é de apenas 6 meses”, escreveram os autores.
Além disso, não há proibições específicas para agências de saúde, nem monitoramento sistemático de laços pós-mandato. Limitações do trabalho incluem seu caráter exploratório (sem análise causal) e foco apenas em diretores, ignorando níveis inferiores. Ainda assim, clama por pesquisas qualitativas para mapear influências reais.
Comentário Editorial MPV
Embora este importante estudo tenha sido publicado no BMJ Global Health em 2020, trazemos essa notícia ao conhecimento de nossos leitores apenas agora, pois tomamos contato com esta pesquisa recentemente. E isso, por si só, já diz muito.
Durante os anos de pandemia, enquanto a população brasileira era instada a “obedecer sem questionar”, estudos fundamentais como este, que revelam os conflitos de interesse estruturais nas agências que regulam nossa saúde, permaneceram invisíveis na mídia tradicional. Não houve reportagens de capa, debates em horário nobre ou manchetes investigativas sobre as “portas giratórias” entre Anvisa, ANS e o setor privado que elas deveriam fiscalizar.
Por quê? Porque questionar era proibido. A narrativa dominante exigia obediência cega às decisões regulatórias, sem espaço para escrutínio público sobre quem toma essas decisões e a quem essas pessoas servem, ou serviram, ou voltarão a servir.
Este silêncio não foi acidental. Foi estratégico. Revelar que 44% dos diretores dessas agências transitam entre o setor público e as empresas reguladas poderia ter levantado perguntas desconfortáveis justamente no momento em que mais se exigia da população uma confiança absoluta e inquestionável nas decisões sanitárias.
O estudo de Scheffer e colaboradores expõe uma realidade que deveria estar no centro do debate público: como garantir que decisões que afetam a saúde de milhões de brasileiros não sejam comprometidas por interesses comerciais? Como confiar em aprovações de medicamentos e políticas de saúde quando os responsáveis por essas decisões frequentemente alternam entre regular e ser regulado?
Outro ponto a ser investigado, relacionado a conflitos de interesse, é a chamada “porta giratória” — ou até mesmo a “porta dupla simultânea” — observada nas associações médicas de especialidades. Nesses casos, médicos que ocupam cargos de presidência e diretoria atuam, simultaneamente ou em um movimento de “porta giratória”, como funcionários ou palestrantes remunerados por indústrias farmacêuticas. Eles também podem ser beneficiados com viagens e hospedagens custeadas por essas empresas para suposta “atualização científica”.
E como não questionar quando o Brasil permanece, até hoje, como o único país do mundo a obrigar vacinas COVID-19 em crianças a partir de 6 meses de idade? Enquanto países como Reino Unido, Alemanha, Suécia, Dinamarca e Japão sequer recomendam essas vacinas para crianças e jovens saudáveis, restringindo-as apenas a idosos ou jovens com graves comorbidades, sempre como recomendação, nunca obrigação, o Brasil mantém essa imposição sem paralelo no planeta. Seria essa mais uma consequência das “portas giratórias” documentadas neste estudo?
Estas são perguntas que o Médicos Pela Vida sempre fez, mesmo sob censura e perseguição. E continuaremos fazendo, porque a ciência verdadeira não se constrói com obediência silenciosa, mas com questionamento rigoroso e transparência absoluta.
A regulação da saúde não pode ser um jogo de cadeiras entre o serviço público e empresas privadas e associações médicas. As agências reguladoras devem servir ao povo, não aos interesses corporativos. Este estudo de 2020 permanece atual e urgente, e o fato de só agora ganhar visibilidade é, em si mesmo, sintoma do problema que ele denuncia.
Fonte
Revolving doors and conflicts of interest in health regulatory agencies in Brazil
Leia mais
BMJ: a ilusão da medicina baseada em evidências – Médicos Pela Vida
