Há poucos dias ocorreu a audiência no Congresso dos EUA referente à indicação de Robert Kennedy à HHS (Department of Health & Human Services, uma agência governamental responsável por políticas públicas de saúde naquele país).
Entre as muitas polêmicas suscitadas na audiência, queremos chamar a atenção sobre uma delas, quando a senadora Tina Smith questionou Kennedy acerca de suas alegações correlacionando o uso de antidepressivos de tipo ISRS (Inibidores Seletivos de Recaptação de Serotonina) e os massacres cometidos principalmente por adolescentes em escolas (mass shootings), um fenômeno que se tornou tragicamente comum lá, e que vem escalando também em nosso país.
Aqui, o trecho da audiência (a partir de 01:17 do vídeo ela entra no tema).
Kennedy foi previsivelmente evasivo em suas respostas, diferente de outros momentos em que fez afirmações mais categóricas, como aponta a senadora.
O que chama a atenção aqui é que este debate venha à tona em um ambiente público e em uma disputa política de alta intensidade no Senado estadunidense. A agressividade com que o tema foi refutado é indicativa do poder do lobby da indústria farmacêutica, o maior dos EUA, que gasta cinco vezes mais do que a indústria do petróleo para impor seus interesses e tem no bolso todos os políticos do parlamento, incluindo os mais “radicais” opositores no Senado, como Bernie Sanders, a quem Kennedy denunciou na audiência por ter recebido US$ 1,5 milhão em doações destas empresas.
Aproveitamos aqui a oportunidade em que tal discussão vem à público para tratar, ainda que brevemente e sem a profundidade merecida, deste tema fundamental. Aproveitei a ajuda deste excelente artigo e também deste outro, ambos extraídos do substack de um médico estadunidense que prefere manter seu anonimato – sabendo bem do tipo de represálias e retaliações que aguardam médicos que ousam dizer verdades inconvenientes para a indústria farmacêutica.
O psiquiatra David Healy tem sido, nas últimas décadas, uma das figuras mais importantes em denunciar este fato já muito bem estabelecido e comprovado por diversas evidências: o de que estes medicamentos podem, em muitos casos, induzir a diversos tipos de comportamentos violentos, que vão do suicídio aos assassinatos. Em geral, são precedidos por episódios de acatisia. (1).
Aqui, uma entrevista em que Healy relata diversos casos levados a julgamento, nos quais ele desempenhou o papel de testemunha como um especialista na questão.
Peter Gøtzsche, em seu livro Deadly Psychiatry and Organized Denial (Psiquiatria mortal e refutação organizada, em livre tradução) apresenta uma montanha de evidências em detalhes, como é característico da vasta obra desse pesquisador criterioso e íntegro. Entre estas evidências, relata os resultados deste estudo, que consiste na análise de 10 entre 129 casos de pacientes do primeiro autor do estudo que apresentaram sintomas de intoxicação por serotonina e acatisia após o uso de medicação psiquiátrica. Os dez casos, por sua extrema gravidade, foram escolhidos para representar os riscos envolvidos no uso de tais medicações. Abaixo, um resumo de suas histórias (todos com exceção de um envolviam o uso de um ISRS ou um ISRN (inibidor de recaptação de serotonina e noradrenalina):
Homem de 18 anos, passou a tomar Prozac (fluoxetina) depois que sua irmã entrou em coma em decorrência de um acidente de carro. Teve acatisia violenta por 14 dias e matou seu pai quatro dias após ter ficado sem os remédios.
Homem de 35 anos, passou a tomar Paxil (paroxetina) que foi receitado devido ao stress causado por uma relação de idas e vindas com a mãe de seu filho. Após 11 semanas de acatisia, esfaqueou mais de 30 vezes sua ex-companheira até a morte.
Homem de 46 anos com ansiedade por não ter dinheiro o suficiente para sustentar a família passou a tomar Paxil (paroxetina). Após 42 dias, durante um delírio maníaco de acatisia, matou seu filho.
Homem de 16 anos, tinha problemas na escola e sua namorada terminou com ele. Passou a tomar Zoloft (sertralina) e Prozac (fluoxetina), tentou suicídio durante o uso das suas drogas. Matou seu terapeuta no hospital após 11 semanas.
Homem de 50 anos com problemas após o divórcio, passou a tomar Effexor (venlafaxina). Atirou em um desconhecido quatro dias após interromper o uso da medicação.
Mulher de 35 anos com problemas devido ao acoolismo do marido. Após três dias de delírio por intoxicação matou a filha adolescente.
Homem de 24 anos com ansiedade e problemas com uso de drogas ilícitas. Foi receitado a ele Lexapro (escitalopram). Diversas tentativas de suicídio e agressões, quase matou sua parceira e passou 12 anos na prisão por tentativa de assassinato.
Mulher de 26 anos com dificuldade com parentes do marido. Fez uso de diversos ISRS e tentou matar duas vezes os dois filhos.
Mulher de 52 anos enfrentava assédio no trabalho. Foi receitado Paxil (paroxetina) e Celexa (citalopram). Cometeu tentativa de suicídio e tentou matar os dois filhos.
Mulher de 25 anos com problemas no casamento. Tomou Celexa (citalopram) e Effexor (venlafaxina). Cometeu diversas tentativas de suicídio com ambas as drogas. Pulou na frente de um trem com seu filho enquanto tomava citalopram.
Casos assim são muito mais comuns do que se imagina, e de fato desde que se iniciaram as pesquisas com ISRS já afloraram evidências de suas ocorrências. Nos primeiros estudos conduzidos com a fluoxetina na Alemanha pela Eli Lilly em 1977, como já relatei aqui, casos de acatisia e um caso de surto psicótico foram motivadores para que a droga tivesse sua aprovação para comercialização rejeitada no país antes que a empresa conduzisse novos estudos manipulados e lançasse sua droga com um estrondoso marketing como a “revolução da psicofarmacologia” nos EUA. O mesmo ocorreu com os estudos da setralina, conforme apontou David Healy e eu relatei aqui.
Muitas vezes se argumenta que os pacientes que tem tais ímpetos de agressividade o tiveram por causa de sua “doença mental” e não pelo uso dos remédios. Contudo, é muito comum que não apenas as pessoas acometidas por tais episódios reconheçam claramente o vínculo do uso das drogas com os episódios de agressividade, como mesmo parentes e amigos próximos apontem que as drogas fizeram da vítima uma “outra pessoa”. Um caso trágico é o relatado aqui.
David Carmichael matou seu filho de 11 anos sob o efeito de um ISRS. Tanto ele quanto sua filha afirmam que a droga o induziu a isso, e ele foi absolvido por um tribunal, ainda que o tema do medicamento não tenha sido utilizado como fundamento para a decisão. Este pai agora tem que viver com o peso de ter assassinado o filho que amava.
Os casos de massacres escolares são chocantes e talvez um dos exemplos mais marcantes dos efeitos sociais avassaladores que tais medicamentos podem ter. Em 1999, o caso do massacre de Columbine foi um marco, abrindo as portas para uma era em que os tiroteios nas escolas se tornaram uma triste realidade nos EUA. O cineasta Michael Moore decidiu investigar as causas dessa tragédia e em 2002 o filme Bowling for Columbine se colocou a tarefa de questionar as justificativas que circulavam na grande mídia e no senso comum da época. Da influência da música de Marilyn Manson à cultura estadunidense da liberação de armas para civis, o diretor foi bem-sucedido em demonstrar que não eram estas as causas do massacre. No trecho aqui ele fala sobre a questão e o uso de ISRS.
Moore cita o estudo interno feito pela Eli Lilly e escondido do público por quinze anos, onde a companhia atesta o fato de que pessoas tomando Prozac tinham 12 vezes mais chances de cometer suicídio do que pessoas tomando outros antidepressivos (aqui, certamente, os antidepressivos referidos são aqueles anteriores ao ISRS, como os triciclicos ou I-MAOs).
Gøtzsche aponta também três fatos que são claros indicadores de que estes casos são consistentemente homícidios induzidos pelo uso destes medicamentos:
1- Estes eventos violentos ocorrem em pessoas de todas as idades, que, por todos os critérios objetivos e subjetivos, eram completamente normais antes da ação e sem nenhum fator precipitante de suas ações além das medicações psiquiátricas.
2- Os fatos são sempre precedidos por sintomas claros de acatisia.
3- Os agressores retornam a seu estado normal de personalidade quando o uso dos medicamentos é interrompido.
É também muito frequente que os episódios envolvam o relato dos agressores sobre uma “despersonalização”, ou seja, a pessoa sentir que está se observando de fora de seu próprio corpo.
Gøtzsche relata alguns dos casos judiciais envolvendo crimes deste tipo:
Homícidios por acatisia foram apontados como exemplos de intoxicação involuntária, com ou sem evidência genética, e algumas pessoas foram bem sucedidas em receber indenizações dos fabricantes por sua falha em avisar… os relatos de um caso sobre o Paxim contra a SmithKline Beecham [agora chamada GSK] inluiam um estudos não publicado da companhia de incidentes de sérias agressões de 80 pacientes, das quais 25 resultaram em homicídio. Em um caso, um homem de 74 anos estrangulou sua esposa, e outro tinha 66 quando ele ficou delirante com o uso de Prozac e assassinou sua esposa, que foi encontrada com 200 ferimentos de faca.
Em 2001, pela primeira vez um juri responsabilizou uma empresa farmacêutica por mortes causadas por um antidepressivo. Donald Schell, de 60 anos, estava tomando Paxil há apenas 48 horas quando ele atirou e matou sua esposa, sua filha, sua neta e ele mesmo.
Teve grande centralidade neste caso os documentos internos em que a SmithKline Beecham demonstrava estar ciente de que um pequeno número de pessoas poderia se tornar agitadou ou violento pelo uso de Paxil. Apesar deste conhecimento, a embalagem de paroxetina deliberadamente não incluía um aviso a respeito de suicídio, violência ou agressão.
Os documentos internos, classificados como “confidenciais” listam o resultado de testes envolvendo mais de 2.000 voluntários saudáveis tomando Paxil ou placebo. Alguns voluntários experimentaram ansiedade, pesadelos, alucinações e outros efeitos colaterais – definitivamente causados pela droga – em dois dias de uso. Dois voluntários tentaram se suicidar após 11 e 18 dias, respectivamente… Dez anos após o veredito, a GSK ainda nega que o Paxil pode levar pessoas a cometer homicídio e suicídio e que existem problemas ligados à retirada da medicação.
Casos em que o medicamento e seus fabricantes são responsabilizados são exceções, e Gøtzsche relata os seguintes casos em que a pessoa afetada pelo uso do medicamento foi responsabilizada pelos crimes cometidos:
Christopher Pittman entrou em mania e atirou em seus dois avós matando eles dois dias após sua dose de Zoloft ter sido dobrada. Apesar de ter apenas 12 anos quando ele fez isso, ele foi condenado a 30 anos de prisão.
David Crespi estava tomando Prozac e três outras drogas há algumas semanas quando ele matou suas duas filhas gêmeas com uma faca. Ele alegou culpa para evitar a pena de morte e foi condenado à prisão perpétua sem possibilidade de condicional, ainda que ele tenha se tornado seu antigo eu após interromper o uso das drogas.
Kurt Danysh tinha 18 anos quando um médico generalista prescreveu inadequadamente Prozac a ele. Ele se tornou inquieto e violento e atirou em seu pai, a pessoa que mais amava, 17 dias após entrar em um estado de humor completamente descaracterizado. Kurt não tinha histórico de violência anterior ao Prozac, mas em 1996 ele foi condenado pelo assassinato de seu pai e sentenciado a 22,5 a 60 anos de prisão. Durante seu caso, e Eli Lilly mentiu no tribunal e alegou que o Prozac não causaria comportamento agressivo, resultando na sua condenação. Mais tarde, em 2004, quando tornou-se público que a Lilly tinha escondido dados de 1988 demonstrando que o Prozac causava violência, o FDA reconheceu que os ISRS podem causar comportamento violento, particularmente em crianças e adolescentes. Apesar destes eventos e dúzias de casos de homícidio ligados ao Prozac que foram subsequentemente relatados ao FDA, o juiz descartou todos os apelos, e levou 24 anos de trabalho jurídico e petições para que Kurt fosse finalmente solto.
Reproduzo abaixo a tradução deste comentário de Kim Witczak feito em uma das postagens sobre o tema:
Até que o FDA e a sociedade estejam prontos para investigar a relação entre antidepressivos e suicídio e violência nós iremos continuar fazendo a pergunta, por que?
Eu estive intimamente envolvida em ajudar a garantir os avisos de risco de suicídio nas drogas em 2004 e 2006 após a morte do meu marido. Deram a ele Zoloft para tratar insônia e ele se enforcou 5 semanas após ter começado a tomar a droga. Ele não estava deprimido nem tinha histórico de depressão. A única medicação que tomava era Zoloft. Nós também movemos um processo para tirar o sigilo de documentos. o FDA, a Pfizer e outras empresas farmacêuticas sabem dos riscos há muito tempo.
Você sabia que a Pfizer ajudou a criar um Manual do Zoloft para Promotores em 1993, para ser usado sempre que alguém alegasse a uma defesa que implicasse na responsabilização do Zoloft?
Quem soube que em 1991 ocorreram audiências do FDA sobre a conexão entre a alta de suicídios e violência e o Prozac? O FDA não fez nada e virtualmente todos os membros do seu comitê receberam financiamento das empresas fabricantes destas drogas.
Dos quase 410 avisos nas drogas psiquiátricas hoje, 27 alertam sobre violência, agressão, hostilidade, mania, psicose ou ideação homicida e 49 alertam sobre auto-mutilação ou suicídio/ideação suicida.
Sempre que ocorre outro massacre ou um assassinato/suicídio famoso a sociedade se pergunta o porquê e as armas são frequentemente colocadas como o bode expiatório. Já passou da hora de tentarmos entender o que pode estar por trás destes atos de violência nas nossas comunidades. Eles podem estar relacionados aos efeitos colaterais perigososo associados às drogas psicotrópicas?
Eu fico de coração partido pelas famílias e temo por nossa sociedade. Todos nós deveríamos ao menos querer investigar porque qualquer um de nós pode ser a próxima vítima.
A trágica história do suicídio de Timothy, marido de Kim, está contada em detalhes aqui, bem como uma série de crimes correlatos cometidos e ocultados por estas empresas. São crimes, pois, como é dito por Kim, tanto o FDA quanto a Pfizer sabiam dos riscos, e lutam por ocultá-los para manter seus lucros em alta. Vejamos, por exemplo, este documento referente a um estudo clínico do Zoloft de 1983. O paciente foi retirado do estudo e o pesquisador fez a anotação abaixo:
Traduzo: O paciente começou a verbalizar sentimentos de vontade de matar outras pessoas e então a si mesmo. O paciente paecia muito mais ansioso e deprimido do que no início (baseline); ainda que isso não se evidencie no Hamilton. (2)
É claro, não apenas tais anotações não vem à público – estas só são acessadas por via judicial graças ao imenso empenho de pessoas como Kim – como este paciente foi removido do estudo, ocultando esta consequência do uso de Zoloft dos resultados.
Ela também apresenta uma troca de e-mails entre um médico sul-africano e um ex-funcionário da Pfizer em que o médico relata pacientes que se tornaram incapazes de expressar emoção e falam de experiências de despersonalização, em que viam a si mesmos de fora de seu corpo, da mesma forma que o marido de Kim relatou pouco tempo antes de se suicidar.
Outros casos são explorados por Kim em seu texto, como o massacre cometido por James Holmes em um cinema de Colorado em 2012, durante a estreia de um filme do Batman. Holmes assassinou 12 pessoas que não conhecia e feriu outras 60. Ele não tinha nenhum histórico de comportamento violento e estava tomando um medicamento genérico de Zoloft (sertralina é o princípio ativo de sua fórmula).
Há muitas investigações correlacionando o uso de ISRS com assassinatos e massacres, mas uma compilação de 2013, citada pelo “midwestern doctor”, traz cerca de 40 casos que incluem não apenas esses medicamentos, mas outros psicofarmácos como a Ritalina (metilfenidato). Reproduzo abaixo apenas alguns:
- Eric Harris, 17, (primeiro tomando Zoloft e depois Luvox) e Dylan Klebold, 18, (massacre de Columbine em Littleton, Colorado), mataram 12 estudantes e um professor e feriram outros 23 antes de se matarem. Os registros médicos de Klebold nunca foram disponibilizados ao público.
- Jeff Weise, 16, estava tomando 60mg por dia de Prozac (três vezes a dose média inicial prescrita a adultos) quando ele atirou e matou seu avô, a namorada de seu avô e muitos de seus colegas estudantes em Red Lake, Minnesota. Então ele se matou. Dez mortos, doze feridos.
- Cory Baadsgaard, 16, da Wahluke High School (Washington) estava tomando Paxil (que o levou a ter alucinações) quando ele levou um rifle para a escola e manteve 23 colegas de sala como reféns. Ele não tem lembrança do evento.
- Kip Kinkel, 15, (tomando Prozac e Ritalina) atirou em seus pais enquanto eles dormiam e então foi para a escola e abriu fogo, matando dois colegas de sala e ferindo 22 pouco depois de começar o tratamento com Prozac.
- Mathew Miller, 13, se enforcou no closet de seu quarto após tomar Zoloft por seis dias.
E a lista continua…
A quantidade de casos, de evidências e a estreita correlação que pode ser estabelecida são tão abundantes que é incrível o quanto tal tema não é discutido. A audiência no Senado com a qual abri este texto é uma demonstração de pelo menos duas coisas: 1-) já existe gente o suficiente gritando para que o tema não possa mais ser simplesmente ignorado; 2-) o lobby da indústria continua forte o suficiente para que sejam taxados de “loucos” os que denunciam esse crime.
É fundamental que as pessoas saibam os riscos envolvidos no uso dessas drogas.
É importante frisar aqui que, caso você use uma dessas substâncias, ela não deve ser interrompida abruptamente pois os efeitos de abstinência podem ser extremamente nocivos. O tema da interrupção do uso será referido em um futuro texto, mas é importante que seja feito de forma gradual e adequada.
1 – A acatisia é um tipo de síndrome motora e psíquica, que pode desencadear desde uma inquietação no corpo a sentimentos extremos de desespero e terror, e que pode ser desencadeada por medicamentos antidepressivos e antipsicóticos, bem como pelos efeitos de sua abstinência (retirada dos remédios) e pode ter consequências graves, como os comportamentos violentos contra outros e contra si mesmos aqui descritos. Informação sobre a acatisia pode ser encontrada neste site, da Akathisia Alliance.
2 – Escala de Hamilton é o principal teste utilizado como avaliador de depressão. Trataremos deste tema em texto futuro.