Legenda do meme: “percecebendo que você não se sente mais deprimido”. “Percebendo que você não sente mais nada”.
“Eu não consigo chorar mais e às vezes sinto que meu verdadeiro eu desapareceu… eu me sinto vazia”1. Assim uma mulher descrevia, em um fórum da internet, como se sentia após iniciar o uso de antidepressivos.
Não é difícil encontrar relatos semelhantes, mesmo se você não for um profissional da área psi ou pesquisador. Hoje o uso dos antidepressivos é tão disseminado, e o efeito descrito por esta mulher é tão comum, que é possível que você já tenha ouvido um relato semelhante de algum conhecido – ou sentido isso na própria pele.
Este efeito, chamado “embotamento afetivo” (emotional blunting, em inglês, para quem quiser buscar mais a respeito) consiste no que costumo descrever como um “achatamento” dos afetos: a intensidade deles é suprimida, fazendo com que se tenha a percepção de “não sentir nada”.
Decidi escrever aqui sobre isso ao postar o meme abaixo, que faz referência ao efeito, e receber algumas mensagens a respeito. Uma delas, de uma amiga que faz uso do escitalopram (encontrado sob o nome comercial de Lexapro, mas também como Fusor, Sedopan, Konecta, Lexoneo e Plenitus), dizia não saber a respeito disso, o que nos leva a um primeiro ponto fundamental, que quem lê o que escrevo por aqui já está cansado de me ver repetir: o consentimento esclarecido.
O embotamento afetivo não é um mistério: ele é um efeito colateral dos antidepressivos ISRS (Inibidores Seletivos de Recaptação de Serotonina, SSRI na sigla em inglês) há muito tempo bastante conhecido e bem estabelecido. Inclusive, os autores da edição de 2001 de um manual de refêrencia da Associação Americana de Psiquiatria (APA) não apenas confirmam a existência destes efeitos em sua prática clínica, como os comparam à chamada síndrome do lobo frontal, que ocorre quando a região do lobo frontal do cérebro é lesionada, levando a apatia, comportamento desinibido, desmotivação e mudanças de personalidade, semelhante ao que ocorria após lobotomias.2 No entanto, dificilmente você encontrará algum usuário destas drogas que tenha ouvido de seu médico que tal efeito colateral poderia ser causado pelo medicamento. Não há, portanto, uma escolha livre e informada por parte do paciente.
Em 2004, uma revisão se debruçou sobre publicações desde os anos 1970 e identificou relatos de casos na literatura do que eles denominam como “Síndrome de apatia induzida por ISRS”. De acordo com seus achados, os efeitos desse tipo são dose-dependentes (quanto maior a dose, maior o efeito) e reversíveis com a retirada dos medicamentos. Mas a síndrome é um efeito frequentemente não reconhecido, e causador de consequências negativas significativas para adultos, bem como dificuldades sociais e acadêmicas para adolescentes.3 O não-reconhecimento significa que dificilmente o psiquiatra responsável por recomendar a droga irá alertar a pessoa afetada mesmo depois que a apatia está instalada. Pelo contrário, é muito comum que identifique a apatia como um sintoma da depressão e aumente a dose da medicação, aumentando assim a apatia induzida pela droga.
Em 2011, uma análise foi feita com base em relatos dos usuários de duas drogas do tipo ISRS (Venlafaxina e Fluoxetina). Os comentários foram colhidos no site https://www.askapatient.com/, que recebe livremente relatos de pacientes a respeito dos tratamentos que realizam. Segundo os autores, dos 468 relatos analisados, os efeitos colaterais mais comumente reportados incluíam sedação, prejuízo cognitivo, redução da libido, embotamento afetivo, ativação (sentimento de excitação, insônia e agitação motora) e instabilidade emocional. Não houveram diferenças na prevalência dos efeitos em relação às duas drogas. O embotamento afetivo era associado ao prejuízo cognitivo, à redução da libido e à sedação; a instabildade emocional, que incluía relatos de aumento de ansiedade, raiva, agressividade e labilidade emocional, estava associada aos efeitos de ativação motora e eram mais comuns em jovens. Aumentos de pensamentos suicidas eram raros, mas se encontravam associados aos dois tipos de efeitos emocionais.4
Não é possível prever como cada pessoa vai reagir a um medicamento, e, enquanto alguns pesquisadores apontam – sem qualquer tipo de evidência – hipotéticos mecanismos para a causalidade de tais efeitos, a pesquisadora e psiquiatra Joanna Moncrieff coloca questões mais pertinentes para pensarmos:
“A questão interessante à qual ainda devemos nos endereçar é se esses possíveis efeitos dos ISRS são específicos. Os ISRS possuem um efeito de embotamento afetivo característico tal como se pode afirmar sobre os neuroléticos? Ou estamos meramente observando efeitos não-específicos de intoxicação química?5 A droga quetamina também é notável por reduzir o reconhecimento afetivo, por exemplo. Possivelmente toda droga psicoativa embrutece nossas respostas emocionais em alguma medida. A questão é se os ISRS possuem algum efeito inibitivo adicional sobre nossa experiência emocional.”6
Assim, o fato é que pouco se sabe sobre como e quais efeitos fisiológicos são causados pelos ISRS. Mas até sites bastante favoráveis ao seu uso apontam que entre 40 e 60% dos usuários relatam algum grau de embotamento afetivo.7
Uma amiga que respondeu à minha postagem do meme (que falava especificamente do escitalopram), disse: “Eu odeio esse remédio. O nível de apatia que ele causa é repugnante. Ficar perto de gente que toma essa bagaça é horrível. Uma pedra tem mais sentimento. Sem contar que você nunca mais goza. Hahahahaha. (…) Ranço define o que sinto por esse remédio. Ele e o topiramato pra mim top five dos piores remédios que já tomei.”
Contudo, como já vimos, a coisa está longe de ser um efeito específico deste remédio (idem no que tange a ausência de orgasmos). Um estudo publicado em 2022 analisou 450 relatos de pacientes no site www.askapatient.com com o intuito de verificar os efeitos de diferentes drogas comercializadas. Foram 50 postagens referentes a cada um dos medicamentos mais utilizados: sertralina, citalopram, escitalopram, paroxetina, venlafaxina, fluoxetina, duloxetina, mirtazapina e bupropiona. Os resultados do estudo apontam que a bupropiona, citalopram e venlafaxina tiveram os “índices de satisfação geral mais altos”. A sertalina, paroxetina e fluoxetina foram os que apresentaram níveis de embotamento afetivo mais altos, enquanto a bupropiona apresentou poucos. 42% (189 participantes) relataram efeitos emocionais adversos. O embotamento emocional foi relatado por 18% dos participantes, a hiperatividade emocional por 14,7%, e os efeitos negativos de abstinência (retirada do remédio) por 14,7%. O embotamento emocional foi mais comum nos participantes que usaram ISRN8 (paroxetina, sertralina e fluoxetina) e menos comum nos que usaram bupropiona e mirtazapina.9
Tendo sido realizado com uma amostragem aleatória e espontânea a partir de um site onde os pacientes relatam suas experiências, o que o estudo pode nos dizer não é a prevalência dos efeitos em cada remédio, mas sim nos mostrar que eles variam imensamente. E que geralmente são muito mais confiáveis as pesquisas que os próprios pacientes podem fazer na internet do que as informações que os próprios médicos lhes transmitem sobre as drogas.
Estudos patrocinados pela indústria farmacêutica (aliás, fica a dica importante: sempre confira quem patrocinou o estudo) procuram tapar o sol com a peneira para tentar esconder elefantes brancos desse tipo. Um deles, publicado no ano passado na revista Nature, procura camuflar o embotamento afetivo causado pelo escitalopram afirmando que se restringe à resposta de aprendizado por reforço em situações com envolvimento afetivo.10 O embotamento afetivo, no entanto, extrapola em muito esse escopo, como os autores acabam admitindo parcialmente ao dizer que “Isso pode corroborar nossos achados de que o grupo que recebeu escitalopram teve disfunções significativamente mais altas nas fases/dimensões correspondentes ao orgasmo/conclusão no CSFQ-14. É possível que os participantes tomando escitalopram experimentem maior disfunção sexual devido a experienciarem menos prazer, o que é corroborado por relatórios anteriores.11
Como aponta o professor Richars Sears em sua análise do estudo de 2022 que considerou os relatos dos pacientes:
“muitos pesquisadores têm criticado o seu uso com base em seus numerosos efeitos colaterais e sua duvidosa eficácia. Além disso, a utilidade dos antidepressivos é provavelmente superestimada na literatura acadêmica devido a práticas corruptas de publicação. Os benefícios mínimos aliados aos riscos do uso desses medicamentos têm levado alguns pesquisadores a exigir que se ponha um fim aos profissionais que recomendam os antidepressivos para tratar a depressão.”12
Uma sociedade embotada
Tendo em consideração os dados a respeito da imensa frequência destes efeitos, cabe nos perguntar o que fazer diante disso. Em minha experiência, encontrei com muita frequência pessoas que, constatando o embotamento afetivo causado pelo remédio, me relataram que preferiam isso ao sofrimento que passavam antes.
Do ponto de vista individual, defendo radicalmente a ideia do consentimento esclarecido: que cada um possa decidir por si o que quer fazer tendo as informações completas sobre as drogas.
Mas para além da decisão individual e consciente (que é quase utópica considerando a desinformação generalizada promovida pela indústria farmacêutica e os médicos educados por ela), eu acredito que essa questão nos coloca coloca uma série de reflexões da maior importância que dizem respeito a todos nós como sociedade e como seres humanos.
O que podemos dizer de uma sociedade em que tem se tornado moeda corrente administrar substâncias que promovem o embotamento afetivo em larga escala? De 2022 para 2023 o número de unidades vendidas de antidepressivos e estabilizadores de humor aumentou 11% no Brasil. Já em 2024, entre janeiro e maio, houve um crescimento de 8% nas vendas de antidepressivos e estabilizadores do humor em comparação com os cinco primeiros meses do ano passado. No total desses 5 primeiros meses, foram vendidas mais de 54 milhões de unidades de remédios dessas categorias.13 Uma pesquisa realizada em 2023 mostra que 16,6% dos entrevistados relataram tomar medicações de uso contínuo, como antidepressivos, sendo que a maioria (77%) utiliza esses produtos há mais de um ano. Considerando que cerca de 40% dos usuários sofrem de embotamento afetivo, podemos calcular na escala dos milhões as pessoas nesse estado em nossa sociedade.
A forma como temos lidado socialmente com nossos sentimentos está expressa no embotamento causado pelos antidepressivos e neuroléticos: não sinta. Tornou-se um tipo de imperativo social não sentir, porque nossa sociedade não comporta isso – é contraprodutivo, e precisamos estar sempre prontos para render mais.
Recentemente, um fato que se tornou famoso e inclusive virou memes me fez refletir sobre isso uma vez mais. No ponto de ônibus, uma mulher com uma cara de “saco cheio” é rendida. Ela parece totalmente alheia ao que ocorre. Em entrevista posterior, a refém Sandra Regina relatou o que pensava no momento: “Eu, com tanta coisa pra fazer, parada aqui.” E aí o ônibus de Sandra Regina passa e ela reflete: “ai, não acredito.”
Sandra Regina foi louvada em memes como um exemplo de “paz interior”, de uma pessoa que “nada mais atinge”. São piadas, mas que expressam muito do que somos como sociedade. Sandra Regina não teve o medo que seria de se esperar quado uma pessoa é feita de refém e tem sua vida ameaçada. Ela se preocupava em não dar conta das suas tarefas. Provavelmente seu ônibus a levaria ao trabalho ou algo semelhante.
Talvez Sandra faça parte dos tantos milhões de usuários de psicofarmácos no Brasil, e estes tenham dado conta de lhe embotar o medo, achatando seus sentimentos. Talvez não, e ela esteja conseguindo atingir esse ideal social sem o auxílio de drogas: achatar sua vida subjetiva e interna em nome de dar conta das demandas de exploração do trabalho, de produtividade, de metas cumpridas.
É claro que nenhum de nós gosta de sofrer, e há um tipo de apelo no “remedinho” que te impede de ficar triste. Mas há algo muito mais forte e alarmante em uma sociedade em que preferimos não sentir nada a sentir emoções, boas e ruins. Acredito que se nossa vida emocional estivesse equilibrada não seria tão atrativo a apatia induzida quimicamente. A balança entre emoções boas e ruins nos faria valorizar a possibilidade de sentir. Mas há um imenso desequilíbrio no sentido das ansiedades, tristezas, angústias, sofrimentos, o que torna muito mais sedutor cortar tudo e virar uma pessoa “funcional” sem se preocupar com sentimentos.
Encontramos nessa “saída” individual a solução de problemas que não conseguimos resolver socialmente: pobreza, desemprego, moradias precárias, violência social, transporte precário, jornadas extenuantes de trabalho, empregos massacrantes, solidão, falta de vida comunitária, falta de perspectivas ou de sentido de vida, etc. Quando estamos massivamente entranhados em uma rede de problemas desta ordem, às vezes os sentimentos se tornam tão sufocantes que uma apatia induzida pode parecer sedutora. A questão que fica é se queremos continuar vivendo em um mundo em que pode parecer melhor não sentir nada do que viver nossa vida afetiva plenamente.
1 – Antidepressant Web 2006, acessado em 18/10/06. Citado em: Moncrieff, J. The myth of the chemical cure. A critique of psychiatrich drug treatment. Palgrave Macmillan, 2008. p. 166.
2 – Marangell, L. B., Silver, J. M., Goff, D. C., & Yudofsky, S. C. 2001, ‘Psychopharmacology and ECT’, in Textbook of Clinical Psychiatry, R. E. Hales & S. C. Yudofsky, eds, American Psychiatric Association, p. 1059. Citado em: Moncrieff, J. The myth of the chemical cure. A critique of psychiatrich drug treatment. Palgrave Macmillan, 2008. p. 166.
3 – BARNHART, W. J., MAKELA, E. H., & LATOCHA, M. J. (2004). SSRI-Induced Apathy Syndrome: A Clinical Review. Journal of Psychiatric Practice, 10(3), 196–199. doi:10.1097/00131746-200405000-00010.
4 – Goldsmith L, Moncrieff J. The psychoactive effects of antidepressants and their association with suicidality. Curr Drug Saf. 2011 Apr;6(2):115-21. doi: 10.2174/157488611795684622. PMID: 21375477.
5 – Todo inibidor de recaptação de serotonina atua elevando os níveis dessa substância em nosso corpo. Ainda que a mitologia psiquiátrica oficial tenha emplacado que a serotonina seria o “neurotransmissor da felicidade” ao propagar a refutada teoria da etiologia da depressão (a respeito disso ver este texto), os fatos demonstram que a serotonina é uma substância tóxica com diversos efeitos nocivos sobre nosso corpo. Veja aqui sobre a serotonina.
6 – Moncrieff, J. The myth of the chemical cure. A critique of psychiatrich drug treatment. Palgrave Macmillan, 2008. p. 166.
8 – Inibidores Seletivos da Recaptação de Noradrenalina.
9 – Camino S, Strejilevich SA, Godoy A, Smith J, Szmulewicz A (2023). Are all antidepressants the same? The consumer has a point. Psychological Medicine 53, 4004–4011. https://doi.org/10.1017/S0033291722000678
10 – Langley, C., Armand, S., Luo, Q. et al. Chronic escitalopram in healthy volunteers has specific effects on reinforcement sensitivity: a double-blind, placebo-controlled semi-randomised study. Neuropsychopharmacol. 48, 664–670 (2023). https://doi.org/10.1038/s41386-022-01523-x
11 – O estudo anterior mencionado é o seguinte: Opbroek A, Delgado PL, Laukes C, McGahuey C, Katsanis J, Moreno FA, et al. Emotional blunting associated with SSRI-induced sexual dysfunction. Do SSRIs inhibit emotional responses? Int J Neuropsychopharmacol. 2002;5:147–51.
12 – https://madinbrasil.org/2022/04/relatos-de-pacientes-revelam-antidepressivos-isrs-muitas-vezes-levam-ao-embotamento-emocional/